Uma vez que a idade me tem dado para a desconfiança, duas ou três coisas sobre João Félix
Vinha cá dizer que me parece realmente estranha esta 'normalidade' à volta da transferência do João Félix para o Atlético de Madrid. O diz-que-disse, os rumores, o Benfica, o Jorge Mendes que empresta o jato para o rapaz ir de férias para Ibiza, tudo. Não há nenhum ser humano cujo trabalho valha 120 milhões de euros e o momento em que dizemos "vale o que o mercado estiver disposto a dar por ele" é aquele em pomos o assunto num plano tão abstrato que só vale a pena dizer isto: escrutínio, escrutínio, escrutínio. Porque da última vez que nos deixámos iludir pelo 'mercado', acordámos com a falência do Lehman Brothers. Não é coisa pela qual me apeteça passar outra vez.
Há uma frivolidade na maneira como se fala disto - 120 milhões como se fosse coisa pouca. Como se o João Félix, que jogou seis meses na I Liga já tivesse demonstrado cabalmente que pode ser um grande jogador.
O que se está a passar é problemático a vários níveis, incluindo este: não é só por acharem que o João Félix vai ser um grande jogador que estão a dar este dinheiro por ele. Aposto que há deles aos pontapés na Europa e na América Latina. É porque ele tem aquela qualidade de 'estrela' que interessa. Aquele atrativo que vai fazer dele uma paixão para os adeptos de futebol, para as adeptas, para as adolescentes, até para quem não gosta de futebol mas se pela por uma celebridade. João Félix atrai as câmaras e alguém já percebeu isso. É essa a única - e grande - diferença em relação ao Bruno Fernandes. E estamos todos a participar nisto como participámos com Cristiano Ronaldo (correu bem), como com Renato Sanches (correu mal).
Gosto de ouvir os comentadores dos programas de desporto falarem do que pode correr bem ou mal - será o país determinante? Ou a cabeça do jogador? É engraçado que ninguém diga que, por 120 milhões de transferência e 6 milhões ano - a margem para falhar é muito pequena. Mais: tenho pena que as pessoas experientes envolvidas nesta transação se mantenham tão longe dos holofotes e não tenham problema nenhum em mandar um rapaz de 19 anos para a frente de batalha. Porque se alguma coisa correr mal, vai ser a cara de João Félix que vou ver nas notícias. Da mesma forma que Ronaldo foi dar a cara pela fuga ao fisco sem preencher o IRS.
Temos de ser exigentes no escrutínio destes negócios que se fazem à custa do nosso divertimento. É preciso dizer com todas as letras que existe um enorme fosso entre o valor do trabalho de um médico, de um cientista, de um advogado, de um jornalista e de um jogador de futebol numa liga milionária. E que tem de existir bom senso.
Não estou a dizer que ele não vale os 120 milhões que querem pagar por ele ou os seis milhões/ano de salário. Estou a dizer que é preciso ter a certeza que este negócio é rigoroso, justo e correto, porque a história diz-nos que em valores tão altos, muitos protagonistas criaram ilusões de impunidade (algumas vezes foram mesmo impunes).
Um mercado livre requer regras e transparência.