Talvez algumas pessoas vejam com benevolência estas coisas. Para elas estão preparadas as mesmas frases que se dizem a pessoas om doenças graves cujo desfecho é incerto:
- É o que é.
- Não se muda tudo de um momento para o outro.
- No futuro será diferente.
- É questão de tempo.
São bons comentários, mas não me chegam.
Eis o que preciso:
1) Identificar o problema
A primeira coisa a dizer nestes casos é que não é por acaso que esta fotografia da comunidade de startups portuguesas está cheia de homens. Esta imagem é o resultado dos milhares de anos de história que nos precedem. Não é um problema dos homens, não é um problema de Portugal tão só, é um problema de todos.
2) Nomear o problema
Fosso de género e desigualdade. Essa injustiça horrível que acontece às mulheres só por serem mulheres.
3) Falar do problema
Nenhuma destas pessoas será diretamente responsável pelo machismo, todos contribuímos. E para mudar faz falta um ditado popular: Roma e Pavia não se fizeram num dia. Nem aconteceu do nada que os americanos tenham ficado com o monopólio da tecnologia nem aconteceu do nada que as mulheres achem que não têm jeito para computadores ou matemática. É o resultado de anos e anos de opções.
Algo tão simples como passar horas a jogar computador, coisa muito típica entre os rapazes da minha geração, criou um lastro de interesse e conhecimento que levou muitos para a informática. Rapazes e máquinas pareceu sempre uma combinação 'natural' quando de natural não tem nada.
4) Debater o que está a ser feito para pôr fim ao problema.
E é por isso que acho que devemos tomar a iniciativa consciente de não representar raparigas apenas com lacinhos e tiaras. É preciso dar-lhes as chuteiras, os lápis, os legos, as construções, os kits de computador Mostrar que podem, como os rapazes, estimular zonas cerebrais diferentes das que se usaram nos últimos anos, mas totalmente ao seu alcance.
E, já agora, também podemos, seguindo a mesma lógica das opções conscientes, ouvir pessoas diferentes das habituais sobre o que são homens e mulheres e descobrir ideias novas. Há essa opção e há a do costume, que é deixar na mãos de homens que pertencem a uma elite cultural, social e/ou económica a perorar sobre o que é o bom e o mau feminismo. O bom, adivinhem, é sempre aquele que desculpa, nem que seja só um bocadinho, o infrator.
O meu marido está sempre a dizer: jornalismo é escolha.
Jornalismo é escolha.
Jornalismo é escolha.
Jornalismo é escolha.
Escolhemos os assuntos a abordar.
A maneira como abordamos o assunto.
O ponto de vista.
Escolhemos as pessoas com quem falamos sobre os assuntos.
Escolhemos as pessoas com quem não falamos sobre os assuntos.
Escolhemos quando o publicamos.
Escolhemos como começamos o texto.
Escolhemos como terminamos o texto.
Escolhemos a informação que vamos dar.
Escolhemos a hierarquia dessa informação.
Escolhemos as fotografias.
E foi aqui que me parei estes dias. A escrever sobre feminismo a propósito do trabalho de uma investigadora portuguesa e a censurar-me de usar uma fotografia em que ela aparece com as pernas de fora.
A entrevistada tirou fotos com um macação de calções e é uma pessoa muito bonita. Numa das fotos está mesmo sexy, pernas de fora, cabelo penteado para o lado. E eu pus uma foto em que ela está bonita e bem, mas não se vê o corpo inteiro. Porquê? Porque na minha cabeça ela é uma investigadora respeitada e apresentá-la dessa forma retiraria credibilidade ao trabalho dela. Eis a ratoeira: o trabalho dela vale porque vale, e eu sei que vale, e a apresentação dela devia ser a que for. Uma coisa não colide com a outra, a não ser entre mentes mesquinhas, e eu sei disso, porque acompanho o trabalho. E, no entanto, cedi, achando que não me cabia a mim desafiar as regras do que é suposto uma universitária parecer -- sisuda, séria, sem corpo.
É isso o machismo das pequenas coisas, a que só podemos fugir pensando nele e explicando aos que chegam a este mundo que o rigor científico não sai beliscado pelo uso de calções.
Um dia, lendo velhas primeiras páginas do Diário de Notícias, do início do século XX, descobri um pequeno texto bastante crítico contra "os feministas". Que fosse de bota-abaixo não me surpreendeu. É o habitual quando se fala em direitos das mulheres. Foi aquele masculino - os feministas. Tem graça. Estamos a descobrir, e bem, homens que percebem que os direitos não podem estar apenas no papel, mas eles, pelos vistos, sempre existiram. Ou, pelo menos, estiveram no princípio de tudo. E eram alguns daqueles que estiveram nessa enorme, gigantesca, fabulosa, marcha do 8-M, em Madrid e outras cidades espanholas. Essa marcha que me deixou roidinha de inveja.
Claro que nunca me passou pela cabeça fazer uma coisa assim. Tenho pena. Eu nem sabia que era possivel. E, pelos vistos, em Portugal, também ninguém se lembrou, deu crédito ou lhe viu interesse.
Uma dirigente do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) manifestar-se contra a greve das mulheres espanholas. Regina Marques diz que em Portugal "não temos razões para isso". "Só metade das mulheres é que são trabalhadoras e têm de fazer greve por razões laborais e não por outras questões". Mas, para o meu apetite, o pimento padrón picante é este: "A greve é algo que está instituído para quem trabalha. Uma mulher que não trabalha, não faz greve. Quem é o patrão que se vai sentir incomodado com essa greve? Portanto a greve é uma questão laboral (...). Uma reformada faz greve contra quem?".
A bem da verdade, nenhuma outra força política se lembrou de se unir a nuestras hermanas (exppressão gasta, mas super bem aplicada neste caso) e compreendo que o MDM luta pelos direitos das mulheres trabalhadoras, mas não vejo como isso poderia colidir com uma marcha como a que se viu em Madrid e em outros mais de 100 mumicípios (brutal!, não sei se já disse).
As mulheres quiseram lembrar que fazem a diferença nos seus locais de trabalho. Que são uma força de trabalho que importa. Bem sei que quando falamos de salários era melhor tratar todos, homens e mulheres, por igual, se a prática não mostrasse que, apesar das leis, as mulheres continuam a receber menos do que os homens. Em Portugal, menos 17% para ser exata. Isto para além da maioria continuar a ser o pivô da vida familiar, e não vou fazer um rol das muitas minudências que as mulheres sabem e que os homens não precisam de acumular no disco rígido.
O que me parece, das palavras da dirigente do MDM, é isto já nem é uma questão feminista. Na sociedade que temos só quem trabalha por um salário é que pode exigir o que quer que seja. Todos os nossos direitos estão indexados ao trabalho. Ser pessoa não basta.
Posto de outra forma, talvez mais simples, se eu decidir ficar em casa com as crianças ou cuidar dos mais velhos, como o meu trabalho não é pago e não desconto para a segurança social, tudo o que faço é considerado nada. É nada? Não tenho direito a reclamar uma vida melhor, não me posso queixar, não posso dizer que ganho uma pensão de miséria quando esse dia chegar? Nunca passou pela cabeça de ninguém que se pudesse descontar ainda que não se trabalhe por um salário em dinheiro mas por uma família? Que uma pessoa para ser livre de tomar as decisões que melhor entende só o possa fazer tendo um salário é coisa muito perversa.
Mas, para voltar ao feminismo, o que a marcha do 8-M vem mostrar é que, talvez, talvez mesmo, estejamos a chegar a novos lugares nisto de ser uma (ou um) feminista. O mundo está a mudar e eu quero fazer parte dessa mudança. Quero ser capaz de entender as novas feministas, miúdas que um dia vão passar a "tocha" às minhas filhas (mesmo que elas já tenham tudo para não se importar nada com isto).
O que uma mulher precisa é de ter opções, escolher livremente, ocupar lugares de chefia, falhar como os homens, marchas onde se exibe o orgulho de ser feminista (já não é palavra maldita) e desses 17% que ainda recebemos a menos do que os homens. Quando os tivermos na mão logo decidiremos se os gastamos nas unhas. E se o fizermos, so what...
A pessoa não quer, não deseja, não ambiciona que a tag feminismo seja a mais iluminada da sua cloud de etiquetas, mas parece que é o que temos e só me dão motivos para isso. Hoje, é este texto da plataforma Capaz, que me caiu ao colo via Facebook. A autora, Suellen Menezes, cita a filósofa francesa Simone Weil como alibi para uma proposta que se resume nisto: durante 20 anos, o homem branco não votava. Com isso, defende, seria introduzida a igualdade.
Às vezes, é preciso sublinhar coisas muito simples. Não é a diferença de sexos que está em causa neste mundo, é a desigualdade a partir da diferença de sexos. Parece o mesmo, mas é muito diferente. Obter vantagens a partir das desvantagens do outro é, justamente, o que não se quer. Por isso é que imaginar que impedindo os homens brancos de votar chegaríamos mais depressa à igualdade me parece uma solução coxa. Parece-me tão óbvio que nem sei como é que se pode defender uma coisa assim. Tão injusta.
Além disso, quando a pessoa diz "homem branco" põe no mesmo saco um conjunto de pessoas que podem não ter nada a ver umas com as outras. Ser homem e ser branco não faz da pessoa machista. Da mesma forma, que não faz o Anselmo Ralph, negro, um defensor dos direitos das mulheres, como me parece que fica claro das letras das suas canções (exemplo: "(Deixa ir, deixa ir, deixa ir) em paz, pois eu preciso respirar novos ares por aí, baby/ (deixa ir, deixa ir, deixa ir), pois não foi falta de aviso, Não foi falta de aviso"). Que fazer nestes casos? O que prevalece neste caso: ser homem ou ser negro? Devemos proibir a música do cantor por uma questão de género ou impulsionar na categoria de minoria? Porque, claro, fala-se da circunstância de ser mulher, mas outras desigualdades existem.
Chego sempre à mesma conclusão. É preciso aceitar os outros como são. Todos.