Às vezes, a vida é assim: um documentário ou série do Netflix atrás de outro
Estive uma semana inteira a pensar na vida e no que não sabemos depois de ver o documentário sobre Michael Jackson, Leaving Neverland (HBO).
Escrevi mentalmente tudo o que queria dizer - de como nem sempre o abuso implica violência e que isso é o que torna tudo mais retorcido; que aquelas crianças foram seduzidas e que isso as faz sentir culpa; como esse caldo as faz ficar em silêncio.
Nessa semana, muitas pessoas diziam-me: "Mas não sabias já?". E bem, sim, eu sabia que ele tinha ido a tribunal acusado de abusos sexuais e que tinha sido ilibado. Já nem me lembrava que tinha havia um acordo judicial de milhões no primeiro caso. Mas não se trata disso.
O que Leaving Neverland me trouxe de novo foi perceber que as crianças gostavam de Michael Jackson, que as mentiras que disseram foram por gostarem de Michael Jackson.
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Depois, ela começou a falar-me no documentário sobre o desaparecimento de Madeleine McCann.
E nessa semana não consegui mais parar de pensar na criança e nos pais. Há, logo, aquele detalhe que é como um soco: os pais nunca lhe chamam Maddie. Ela é a Madeleine. Começamos logo isto enganados.
O que se passa com este caso é que parece tão simples que qualquer pessoa pode ter na sua mão a chave do mistério.
Por outro lado, profissionais vários já estiveram envolvidos sem nenhum êxito. Ponho até a possibilidade de esta menina ter saído pelo seu pé, ter caído e ter morrido sem que ninguém se tenha apercebido.
Do que li, e não foi publicada assim tanta coisa em torno do documentário (já que ainda por cima a produtora não o promoveu), foi bastante criticado no Reino Unido por não trazer nenhuma novidade.
Os pais não quiseram falar por considerarem que a sua participação não acrescentaria nada enquanto há uma investigação em curso.
O que "O Desaparecimento de Madeleine McCann" faz é reconstruir a história pelas várias teorias que foram sendo investigadas até aos dias de hoje.
Os pais podem ser culpados (era o que eu pensava antes de começar a ver), mas também podem não ser. Há tantas possibilidade de esta menina ter sido raptada como de ter sido morta pelos pais.
Talvez não tenha novidades para muitas pessoas, mas não me posso incluir nesse grupo tão bem informado.
Eu descobri imensas pequenas coisas:
- Como a imprensa prejudicou as investigações, por um lado; e como foi manipulada, por outro. É como se me espetassem um punhal.
- Como a investigação foi mal conduzida. Há a atrapalhação inicial, mas essa pode acontecer a qualquer polícia do mundo. Devíamos ser mais compreensivos em relação a isto, tendo em conta que quando não há certezas, é preciso apostar numa hipótese e segui-la.
- Já não se pode ser tão compreensivo com a necessidade de encontrar um culpado à força só para apresentar resultados. A dada altura, percebe-se, a PJ já não está à procura de Madeleine, está a querer salvar a sua pele. E, por amor de Deus, eram apenas críticas. Muitas delas justificadas.
Parte do processo está online. É só ir ver o que foi perguntado às inúmeras testemunhas do caso. É só ver que entre 3 e 6 de maio recolheram depoimentos de mais de 100 pessoas. Que em tão pouco tempo é perfeitamente possível ter falhado alguma coisa. Que se devia ter voltado a falar com todas estas pessoas e não apenas com algumas.
- Finalmente, os pais, e quem os aconselhou (o que não fica claro para mim), na sua tentativa de manter a atenão sobre o desaparecimento da filha acabaram por banalizar a criança, as buscas, o caso. Tornou-se uma ficção baseada em factos reais que era preciso alimentar. Essa parte também prejudicou a investigação.
Debatemos bastante o assunto no jornal, mas não chegámos a nenhuma conclusão. E a criança continua desaparecida quase 12 anos depois. Tira o ar só de pensar. Não devíamos parar de procurar.
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Entretanto, enquanto andava nisto, o António entretinha-se com After Life, a série da Netflix escrita e realizada pelo Ricky Gervais, que é também o protagonista. Explico-a como ele me explicou: a mulher de um homem morre e deixa-lhe um vídeo com indicações para a vida. Ele sente-me miserável e infeliz, passo-lhe o pior pela cabeça.
Para quem vê, é triste e divertido em partes iguais.
Este sábado de manhã, quando terminei, a soluçar, o António não teve a tentação de me gozar. Ele sabe que aquele último episódio vale bem aquelas lágrimas. É verdade e quase todos os dias esquecemos, são as coisas mais banais e pequenas - uma camisa passada a ferro, a louça lavada ou uma jarra com flores - que nos levam para a frente. São muito grandes, as coisas pequenas.
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Próxima? Aceito sugestões.