A pessoa quer defender o jornalismo mas nem sempre consegue
Maio de 2000, chego a Barcelona. Uma das notícias do momento tinha que ver com o caso Rocío Wanninkhof, uma rapariga de 19 anos que tinha sido encontrada morta. As minhas memórias são turvas. Acreditava que o corpo tinha sido descoberto por esta altura, mas era da detenção da alegada assassina, a ex-namorada da mãe, que se falava. Também tinha uma vaga ideia de que tinha existido uma reviravolta no caso e que, afinal, tinha sido um homem a matá-la.
Juntei os pontos por estes dias com o documentário "O Caso Wanninkhof-Carabantes". Não só Rocío Wanninkhof não foi morta por Dolores Vázquez, como isso aconteceu em parte porque eram os anos 2000 e "uhhhhh, lésbicas", como o verdadeiro assassino acabou por repetir o delito, matando Sonia Carabantes, 17 anos. "Se tivessem investigado mais e não se tivessemcentrado apenas numa pessoa, tê-lo-iam encontrado. Então, o que aconteceu à minha filha poderia ter sido evitado", diz a mãe da segunda vítima.
Dolores Vázquez, a mulher erradamente acusada, não recebeu uma indemnização nem tão-pouco um pedido de desculpas das autoridades.
Passei parte do documentário entre a incredulidade e a vergonha em relação ao comportamento da polícia e aos jornalistas. Muito simplificadamente: os mortos não falam, os acusados não falam e apenas a polícia diz coisas, veiculando opiniões e preconceitos como factos. Os jornalistas, cheios de opinião e preconceito, noticiam. Fica na nuvem quem terá a responsabilidade de que as coisas sejam assim.
A ver se me explico: Dolores Vázquez foi considerada suspeita por ser uma pessoa próxima da família de Rocío Wanninkhof, mas é o facto de ser lésbica que atrai. Beatriz Gimeno, ativista dos direitos LGBT escreveu um livro sobre o assunto: Foi a lesbofobia que condenou esta mulher em primeiro lugar. Apesar das provas e até do sólido alibi que apresentou para a noite do crime, considerou-se que o seu aspeto masculino e até factos como praticar karaté provavam a sua culpabilidade.
Não sei exatamente como funciona uma investigação policial, mas do que vou lendo e percebendo, perante as evidências formam-se hipóteses que dão origem a linhas de investigação. Podem ser muitas linhas de investigação como acontece no caso da Maddie -- Foram os pais? Foi intencional ou Foi um acidente? Foi um rapto? Circunstancial ou planeado? -- e como não se podem investigar todas as mesmo tempo fazem-se opções. No caso dos McCann, investigá-los a eles. No caso Wanninkhof, a madrasta.
Em casos como estes -- raros, misteriosos, interessantes, que apelam às nossas emoções -- os jornalistas estão sempre em cima. Acompanham ao máximo tudo o que vai acontecendo. O mais mínimo detalhe é notícia. E isso não tem mal, é o que se espera. É o que espero dos meios de comunicação. Mas da mesma maneira que a polícia formula teorias baseadas em preconceitos, os jornalistas escrevem a partir desses mesmos preconceitos. E uma vez que todos estão a dizer o mesmo, uma incorreção, uma meia verdade ou algo que é apenas uma hipótese converte-se numa certeza. Nem é uma verdade. É um facto.
Do lado do jornalismo, há momentos em que não é possível fazer muito. Se a polícia prende uma mulher como suspeita do crime essa é a notícia. Quando entramos no quem é a pessoa, entramos na teoria da polícia. Neste caso, sustentavam que a ex-namorada da mãe, vê em Rocío (com quem se dá mal) um entrave à reconciliação. Parte dessas informações são confirmadas pelos próprios intervenientes. De tudo o que vejo no documentário, a própria mãe de Rocío valida a teoria ao, pelo menos, considerar possível a situação.
Essa narrativa é publicada, debatida, replicada, dissecada e, com isso, dá força à teoria da polícia. Valida-a. É dada como certa, e o Ministério Público apresenta essa teoria para alavancar a acusação da mulher, ainda que as provas sejam circunstanciais. A comunicação social continua a relatar os factos que emanam destas investigações. E se alguém questionou estas ideias teve muito menos destaque e palco do que o contrário. Os nossos preconceitos continuam a funcionar.
Em julgamento, o ênfase é posto nessas mesmas provas circunstanciais e um júri popular condena Dolores Vázquez a 15 de prisão. Ela parece masculina, ela parece ter ódio por Rocío... As provas são circunstanciais. Os jornalistas relatam-no tal qual. Ou partem para o julgamento já com a suas certezas. O ADN masculino detetado numa beata que é encontrada no local do crime não é suficiente para criar alguma dúvida, as marcas de pneus que não coincidem não bastam, o alibi naõ chega. É preciso condenar. Os jornalistas noticiam o decorrer dos trabalhos, mas não há dúvidas. As instituições vão confiando umas nas outras, confiando que foi feito tudo como devia, alheias aos seus preconceitos e, por que não dizê-lo, sem grande reflexão.
A polícia podia fazer um trabalho melhor? Podia. E o Ministério Público podia ver menos novelas e ater-se mais aos factos? Sim. Mas a partir de certo nível, o jornalismo também tem de parar e direcionar os seus recursos para estar do lado das liberdades e garantias dos cidadãos comuns. O interesse por um caso, a sua mediatização (que acaba por não ser mais do que o tempo que a 'história' ocupa no nosso espaço (jornais) e tempo (rádios e televisões) não pode bitola de culpabilidade das pessoas.
Claro que era mais picante ter a solução para o crime e que essa solução esteja numa história de amor que corre mal, mas é preciso mais. Espero lembrar-me disto da próxima vez.