A memória é curta, mas disto lembro-me bem. Em 2008, 2009, às sextas-feiras sabia-se que o Jornal das 8 da TVI traria qualquer coisa anti-Sócrates. A certa altura, a coisa começou a ser percecionada assim: aquele era um jornal que tinha qualquer coisa contra o primeiro-ministro. Isso acontecia, em parte, pela maneira como as peças eram feitas. Porque nunca contavam tudo e deixavam sempre mais uma "bomba" para a semana seguinte. Ficava a sensação que queriam "queimar em lume brando" o chefe do Governo. Numa dessas peças, lembro-me perfeitamente, Ana Leal sustentava os alegados subornos do caso Freeport com uma carta anónima que tinha chegado ao Ministério Público.
Muitas coisas que se passaram naquele Jornal das 8, incluindo o facto de S. Bento dizer que só era contactado para comentar as suspeitas à sexta-feira, às 19.00, o que até hoje não sei se é verdade ou mentira, contribuíram para que José Sócrates pudesse ser visto como uma vítima de mau jornalismo. Não foi só isto. Havia informação institucional que suportava a inocência de José Sócrates. Ver, a propósito, a entrevista de Cândida Almeida na RTP nesta época.
Estas coisas aconteceram num Portugal pré-queda do BES, pré-Troika, pré-austeridade e, portanto, antes de nós, geração de 70, ter começado a assumir lugares importantes à frente "das instituições". Muita coisa mudou.
Hoje, como notou um colega, é uma vergonha fugir aos impostos (antes havia gente a gabar-se).
Hoje, contratar uma pessoa de família para um cargo público é uma vergonha (antes era normal).
Damos pequenos passos, sim, mas logo que sejam firmes e seguros, está tudo ok.
Quanto às reportagens da TVI, por mais mau gosto que tenham (e em alguns casos têm), prefiro-as ao silêncio. Só neste final de ano, fizeram uma revolução na Raríssimas e, espero, farão uma revolução na IURD, na segurança social e na Santa Casa. Que, como diz o meu marido, mais vale ocupar-se do que sabe em vez de se querer aventurar na alta finança.
Por incrível que pareça, ou nem tanto, já que isto é uma língua incapaz de fazer um verbo novo vá-se lá saber há quanto tempo, ainda é possível inventar palavras e que elas tenham um sentido. E eu não digo isto embevecida por ser mãe e querendo propor alguma coisa sem tino. Quero, sim, propor o verbo “mantar”, tão útil e bem lembrado, pela nossa Quica. MANTAR = pôr a manta. Como é que ninguém se lembrou antes?
Não é por acaso que lhe chamam Preparação. A sala dos 5 anos é uma antecâmara do que virá. Esses longos dias sentados numa mesa, usando o lápis, usando a cabeça, usando os dedos para contar. Soa tão distante e, no entanto, só falta um ano e começam a fazer caminho para entrar em pleno nessa vida. Todos os dias se treina a motricidade fina. Não mais os meninos chegam ao primeiro ano precisando de esponja e agulha para picotar. Não se fazem ondas intermináveis ou saltos de coelho como em 1982.
A Francisca já sabe escrever o nome em maiúsculas, um feito extraordinário tendo em conta que não perdi um segundo no assunto, a não ser para me lamentar. Que raio de ideia ter dado um nome tão complexo à mais bebé das crianças. F-R-A-N-C-I-S-C-A. Tantas voltas, tantas retas, tantas sílabas. E, no entanto, já sabe. Duplica o meu orgulho para ser sincera.
Próximo passo, reconhecer as 18 palavras básicas de onde, daqui a um ano, extrairá letras e frases. O meu nome é... A mãe é bonita...Eu falo com Jesus na capela...
Madalena foi "amiga". Teresa, "flores". Quica, "pai". É a primeira de todas as palavras que aprendem. A mais simples. Tão pequenina, sem acentos, só com aquela pintinha que diverte. Inventei uma canção com a palavra amiga, escrevi uma história com flores e este ano tive de escolher um quadro com um "pai" e explicá-lo a 15 pares de olhinhos e ouvidos.
Foi este Retrato da Família Bellelli, de Edgar Degas, da segunda metade do século XIX, que é uma época que sempre me entusiasma ver nas pinturas. As crianças gostaram de tudo, mas a parte que os fez levantar as cabeças com mais entusiasmo foi quando lhes contei que há mais do que um pai neste quadro. Então, eles começaram a procurar e procurar pequenos detalhes até que uma das meninas apontou, meio tímida, aquele desenho emoldurado em segundo plano, que não é o outro senão o pai da senhora de negro.
Todas estas coisas, mais os nomes dos retratados -- Gennaro e Laura, barão e baronesa de Bellelli, e as filhas, Giovanna e Giulia, de 10 e 7 anos -- descobri uma destas noites bem tarde enquanto estudava o que lhes ia contar. O uso do verbo estudar é rigoroso, gostava de acrescentar.
Foi difícil encontrar uma pintura com um pai a fazer de pai, sem conotações religiosas. Deixo esses para o sortudo a quem calhou a palavra Jesus.
Andei às voltas com a pintura antiga em vão. Então, avancei no tempo. Impressionistas. Achava que podiam existir cenas de família. Tinha quase a certeza que já as tinha visto. E vi. Mas, claro, qualquer pesquisa "père" + "impressionism" vai parar ao Claude Monet, por ser a pessoa a quem é atribuída a paternidade do movimento. Porém, tanto quanto percebi, não se interessava por cenas familiares com um pai. Aliás, foi preciso alargar a busca a um "family" + "impressionism" para chegar a Degas, que, por acaso até tem outro quadro, Place de La Concorde, de um pai com as duas filhas. Era bonito, mas os bibes das meninas Bellelli eram imbatíveis. Os miúdos, e a professora, adoraram.
Degas não terá sido o único a pintar cenas com um pai, mas que elas estão em minoria, disso não há dúvida. As crianças costumam estar com mulheres, mães ou amas. Mesmo neste quadro, o homem contempla as crianças, mas quem está a cuidar delas é a mãe. Percebe-se. A cena tem quase 150 anos, mas ainda podia ser um fim de semana num qualquer parque em Portugal. As crianças com as mães, o pai em posição mais recuada. 2017 e ainda se vê.
Degas fez a diferença pintando esta cena aparentemente banal -- a mulher na sua dignidade burguesa, de luto, chorando o pai que está na moldura, e o homem quase de costas a quem adivinhamos um olhar dócil para as filhas. Pelos vistos, se temos cenas do quotidiano, aos impressionistas devemos qualquer coisa. (E ainda bem).
Cenas de gente sem nada de extraordinário que perduraram porque alguém achou bonito guardar a imagem de uma mulher triste e do marido sentado numa cadeira. Ou uma tarde num barco. A jovem com a sombrinha ou os meninos na creche... Em quase todas, se repete esse modelo: as crianças estão com as mulheres, os homens “fazem coisas”, algumas mulheres são objetos de desejo e, coisa curiosa, foi mais ou menos por esta altura que Dejeuner sur L’Herbefoi pintado. Um quadro quase casto hoje, totalmente revolucionário quando Edouard Manet o pintou. Nem tinha noção, mas aquela mulher foi das primeiras, talvez mesmo a primeira, a ser pintada nua, na rua, sem ter lhe pôr umas asinhas e um crucifixo como desculpa.
Calma! Estas partes não contei às crianças.
[Imagem: O Retrato da Família Bellelli, de Edgar Degas, 1860, Museu de Orsay]
Estava em Sintra, num trabalho, e recebo a notificação. Morreu Zé Pedro, dos Xutos e Pontapés, aos 61 anos. Tem uma certa dose de ironia isso, porque foi em Sintra que soube da existência desta banda. Estar no 7.º ano e o Gonçalo, meu colega, falar do 88. Ouvi esse disco até ficar impróprio. E descobri a palavra "amiúde"
Para Ti Maria
É impossível dizer esta palavra, ou lê-la ou ouvi-la, sem me lembrar dos Xutos. Tal como é impossível pensar neles e não me vir à cabeça um concerto no Arraial do Técnico, devíamos estar em 1997. Foi aquela fase dos Dados Viciados, eles vestiam casacos de leopardo e coisas assim, um bocado barrocas, e já eram respeitáveis dinossauros. No regresso ao palco, após o intervalo, e perante a dormência do público, a minha dormência, diz o Kalú: "Vocês não pedem, mas a gente volta na mesma". Penso nisto e é impossível não me lembrar da Margarida, do Rui, do Ricardo, do Sérgio, da Inês, do Bruno, da Lena. Fui com ela celebrar os 25 anos dos Xutos no Pavilhão Atlântico. Essa sala já mudou de nome três vezes. E os Xutos sempre cá.
"Banda sonora de muitas vidas", chamou-lhes o Tiago Freire, uma das 'penas' do Altamont, resumindo tudo o que penso. Eles trouxeram-me à idade adulta e estiveram (estão) sempre cá. O que é que cantámos todos juntos no dia em que Portugal ganhou o Europeu? O que é que se mostra às crianças quando lhes queremos dar "os clássicos" da música portuguesa? Xutos (e GNR)!
Troquei palavras de circunstância com o Zé Pedro um dia. Ele passou pela redação onde eu trabalhava (que nervos!) e foi exatamente como descrevem. Carismático, simpático, muito pessoa. Só alguém assim pode admitir que tem muitos ídolos e que não se vê como tal, apesar das pessoas lhe dizerem que é um. Um homem que cresceu, mas nunca envelheceu. Um uhu nacional. Ontem, na rádio, alguém lhe chamou o anjo do rock 'n' roll e, por absurdo que seja, pareceu-me a definição perfeita. (Talvez não pensasse assim se não estivesse dentro do carro, sozinha, a fazer o IC19, a caminho de casa).
Perdermos o Zé Pedro é perder duas vezes... Perdemos o homem e perdemos nossa própria vida. Cada vez mais pedaços do meu cérebro se parecem com álbuns de fotografias. Só existem se me lembrar de os abrir. E a minha tristeza é muito essa.