A cerimónia de entronização da Júlia Pinheiro ou o novo 'Triunfo da Vontade'
Estive a assistir, não diria atentamente mas pelo menos com interesse, ao regresso de Júlia Pinheiro à SIC e estive mesmo mesmo para vir aqui escrever que tudo aquilo me pareceu um tolice pegada e que daquilo tudo só se salvava a própria apresentadora, mas ainda bem que tirei mais uma hora para pensar no assunto, porque se quisermos ser realmente honestos a TVI faria igual se pudesse. Tanto é assim que hoje vai emitir, como se nada fosse, um episódio do programa 'Depois da Vida' em que participou o Carlos Castro - assim uma espécie de missa do 7.º dia moderna - que basicamente configura o mesmo género de actuação: vale tudo porque ninguém dá por nada com o 'barulho das luzes'.
Aliás, todos fariam o mesmo se pudessem, incluindo, quem sabe, a RTP, não se desse o caso de depois ser certinho que teriam a ERC à perna. E bem, porque já seria o cúmulo, além de termos de levar com o que levamos, eles ainda pusessem um câmara de mota a seguir o carro que conduz Júlia Pinheiro à glória, qual Hitler filmado por Leni Riefenstahl no 'Triunfo da Vontade' - só faltava a escadaria!
Bom, mas o caso é que o chinfrim à volta da apresentadora parece-me "natural" - estranhos tempos estes em que uma pessoa se habitua a isto, realmente, mas já não há volta atrás -, o que já me parece total ridículo e isso é que a TVI nunca faria é pintarem um retrato da Júlia Pinheiro que parece que foi ela a senhora que João Paulo II tocou e por causa de quem será beatificado. Segundo Cláudio Ramos ('Capa da Revista'), ela é uma dona de casa de se lhe tirar o chapéu. Meia hora depois, segundo Nuno Graciano, é uma mulher com um coração de ouro, toda dada às causas. E são estas, segundo eles e com este tom, as razões por que Júlia Pinheiro é a apresentadora portuguesa mais popular.
Descontando o profundo machismo da coisa, que se resume a acharem que uma mulher só merece êxito, glória e um ordenado gordo se, sendo mulher, passar as noites com a barriga encostada ao fogão e as manhãs no tanque enquanto por outro lado reza pelos pobres, ciganos e desprotegidos da Cova da Moura, gostava de perguntar a estes apresentadores (e a quem os deixa apresentar programas de TV com este género de discurso) se acham isto possível.
Acham que é possível uma mulher que está na direcção de uma televisão e veio de outra e ainda apresenta dois programas de TV, possa cuidar da família nesses termos? Acham que ela vai ao Continente ao sábado à tarde e ao Pingo Doce quando há "uma falta". E acham que os espectadores gostam dela porque é uma mulher de causas? Ou será que a Júlia Pinheiro é popular porque é genuína e boa profissional no que faz? E que se limita a fazer o seu trabalho? Eu acho que é mesmo por isso que ela é a mais querida. Porque não anda a fazer de conta que é uma cozinheira de mão-cheia, que adora ver o 'Espírito Indomável' enquanto passa a ferro e, lá está, reza pela família de Renato Seabra.
Só espero, é que espero mesmo, que a presença dela na SIC sirva para agitar as consciências que pensam desta maneira e, sobretudo, que não seja engolida pela máquina.