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Quem sai aos seus

Um blogue para a Madalena, para a Teresa e para a Francisca.

Três semanas de férias, uma viagem de um ano

É possível que estas tenham sido as férias mais bem aproveitadas de sempre. Três semanas de descanso onde cabem idas ao Alentejo e ao Algarve enquanto passeio durante um ano pelos EUA, suspensa do que conta Isabel Lucas em Viagem ao Sonho Americano. Ler um livro bom é uma sensação que não preciso de descrever e só por isso já teria valido a pena. Acontece que estas páginas são muito mais do que isso. Primeiro é um desses livros que nos faz querer ler outros livros (é o melhor elogio que lhe posso fazer), depois é um retrato da América no momento em que mais preciso dele. Basta dizer que coincide com o momento em que os supremacistas brancos aparecem, basta dizer que é um conjunto de reportagens escritas durante a campanha eleitoral, a vitória e a tomada de posse do inominável, percorrendo 97 mil quilómetros de EUA, publicadas inicialmente no Público. A ideia (se bem percebi) é esta: como a literatura é moldada pela paisagem, a partir de 16 romances. Ao mesmo tempo, como é que o país de Obama é o país de Trump? Para quem anda à procura de um sentido para tudo isto (eu ando), aqui encontra algumas (boas) pistas. 

Em novembro de 2017 acompanhei a orquestra Gulbenkian numa digressão por São Paulo e Rio de Janeiro e conheci André, violetista, da Carolina do Norte. Antes de um concerto, precisamente 8 de novembro, dia das eleições, ele e o maestro, também norte-americano, trocavam impressões sobre o andamento dos resultados eleitorais. Interessou-me aquele 'quadro', porque André é negro e o diretor artístico, Lawrence Foster, é judeu. Nenhum dos dois queria que o inominável ganhasse, ambos tinham medo, mas, por essa altura, esse ainda era um cenário que parecia de ficção científica. Sobretudo para mim. Porque André repetia: "Não confio nas sondagens". Ficámos a conversar e ele disse esta frase: "Com este gajo temos o Ku Klux Klan a aparecer em público com as bandeiras do Sul a intimidar as pessoas".

André, 60 anos e memória q.b., tinha 14 anos quando frequentou pela primeira vez uma escola com brancos. Façamos as contas rapidamente: foi em 1970. Como me explicou, apesar da ordem federal que abolia a segregação nas escolas ser de 1954, só em 1970 foi aplicada na Carolina do Norte, uma informação que pode ser contrastada no google a qualquer hora (foi o que fiz nessa noite quando cheguei ao hotel). Foi ontem que negros e brancos puderam começar a usar as mesmas casas de banho, como se vê no filme As Serviçais (2011). Foi na década de 60 que Rosa Parks se recusou a ir para o fim do autocarro e que Martin Luther King fez O discurso.

O que André dizia parecia impossível, mas com a vitória de Trump tornou-se evidência. Com Steve Bannon na Casa Branca, com Charlottesville, com as reações de Trump e, sobretudo, depois de ver o documentário da Vice News e do que mais tarde relatou a jornalista, Elle Reeve, a Anderson Cooper. As palavras do músico não são hipérbole. E outros partilhavam já desta ideia de que "com este gajo temos o Ku Klux Klan a aparecer em público a intimidar as pessoas" quando, ao longo de 2016, Isabel Lucas calcorreou os EUA. Transcrevo o que lhe disse Robert Moore, diretor do El Paso Times, jornal da cidade na fronteira com o México: "Donald Trump levou a discussão a um nível completamente radical, e de alguma forma dá permissão a outros para usar o mesmo filme que ele está a usar. Isso é talvez a coisa mais nefasta que está a acontecer nestas eleições. Uma espécie de grande árvore maléfica à qual foi permitido chegar à superfície. Agora é aceitável falar de pessoas de uma forma que seria impensável há poucos anos" (página 217). Ao aceitar o apoio destes elementos, Trump dá-lhes a bênção da mesma maneira que legislar o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um cartão vermelho à homofobia.

Terminei o livro na noite de sábado com uma certeza: é incrível o grau de ignorância em relação aos EUA. Aconteceu-me alguma frustração ao longo das páginas por não ter lido nada de alguns escritores que dão informação tão importante sobre o mundo. Fico sempre a pensar: mas que raio faço eu com o meu tempo? E essa ignorância que não tem nada de mal, em teoria. Há imensas, imensas coisas sobre as quais o meu desconhecimento é vasto  e profundo, mas este país é outra coisa. Quero saber mais sobre os americanos. Próxima leitura: "A América e os Americanos", de John Steinbeck.

Obrigada, Maria João, por este duradouro presente.

 

 

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