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Quem sai aos seus

Um blogue para a Madalena, para a Teresa e para a Francisca.

Derradeiro post sobre igualdade de género

Das palavras de Ricardo Araújo Pereira no "Governo Sombra" cada um tirou o que quis, a propósito dos livros para rapazes e livros para raparigas.

Uns fixaram-se na parte dos exercícios, porque afinal também havia exercícios difíceis para rapazes nos livros da Porto Editora, que ora não vê discriminição, ora aceita recomendações para retirar livros do mercado, ora critica a decisão, ora partilha vídeos de programas de TV na sua página de Facebook. Outros, como eu, preferem a parte em que ele também vê que há discriminação na maneira como se representam rapazes e raparigas e que isso, talvez, seja um problema. (Tem sido curioso ver como, à minha volta, pais de raparigas se preocupam mais com estes assuntos.)

Com ou sem RAP, o parecer técnico da CIG - Comissão de Igualdade de Género diz que há mais exercícios "simples" do que o dos rapazes. Mas vinha cá só dizer o seguinte: mesmo que não existisse, tudo o que disse, e penso, continua a valer. Incluindo  a parte em que me parece manifesto exagero que se "recomende" a retirada de livros do mercado. Basta assinalar as boas e más práticas, à laia do que faz, por exemplo, o Plano de Leitura. Não precisa de dizer que outros livros são maus, basta dizer quais é que são bons (embora, claro, em caso de queixa tem de produzir pareceres e isso pode incluir dizer "está mal" com todas as letras).

E agora vou concentrar-me no outono, no regresso à escola, nas atividades extra-curriculares, em festas de anos, casas de sonho e outras coisas boas.

 

Última hora: vamos continuar a ser homens e mulheres

Pessoa que ande pelas redes sociais perguntar-se-á que sentido tem lutar pela igualdade de género. Quero juntar-me a essas pessoas. Deixem-me cá pensar se alguma vez aconteceu alguma coisa num passado recente -- grande, pequena ou de médio formato -- pela qual foi preciso as mulheres lutarem que me faça pensar que todos os gestos contam a caminho de um mundo em que as minhas vão ser tão bem pagas quanto os rapazes e terão a mesma igualdade de oportunidades. Não sei... Assim, de repente, apanharam-me desprevenida... Não sei bem... Só me consigo lembrar de...

Votar. Casar com quem quero. Usar calças. Andar com um homem na rua e ele não ter de ser meu marido e não ficar "falada". Contracetivos. Divórcio. Conduzir. Fumar. Poder não andar com um lenço na cabeça. Não saber cozinhar ou costurar e isso não ser o fim do mundo (se bem que em certos universos ainda é). Viajar sem ter de pedir autorização a um homem. Viver sozinha. Estudar. Ter opinião.

Os mais importantes direitos já foram conquistados, estão legalmente consagrados, mas, coisa importante, as mulheres ainda recebem menos do que os homens e as mulheres ainda fazem mais tarefas domésticas. Para este dado não preciso de estatística ou link, basta-me olhar para a minha casa e para o que vejo nos meus amigos. É outro assunto que me interessa. Numa excelente, e duradoura, reportagem do Público na Suécia, uma especialista em igualdade género explicava que a divisão do tempo com a vassoura, a louça e o pano do pó era essencial para fazer crescer o salário das mulheres. Afinal, não basta mandar os homens para casa com um mês de licença. É preciso explicar que não vai aparecer um duende para aspirar, apanhar a roupa e dobrá-la, antecipar que é preciso almoçar e antever que o frigorífico não se enche sozinho... Para lá dos próprios cuidados infantis.

Como já disse, ou tentei, vá, quero dizer as palavras certas porque me interessa muito como as palavras podem provocar um contágio positivo na nossa vida. E quando digo palavras, quero também dizer desenhos, fotografias e o que represente mulheres e homens. Embora só muito recentemente me tenha dado conta desta subtileza, é verdade que estamos habituados a associar os rapazes e as raparigas exatamente como nas capas dos livros da Porto Editora. Mesmo que todos resultados escolares nos digam que as miúdas têm tão bons resultados como os miúdos, onde é que estava o lápis? As máquinas -- foguetão, navio -- estavam do lado deles. As raparigas estavam resumidas a seres que dançam e comem. Chega até a ser triste a verdade daqueles desenhos, tendo em conta como nos pressionam para sermos magras como bailarinas e como a comida, e as dietas, são um assunto comum entre mulheres.

"Homens e mulheres são diferentes", dizem-me. Como se essa evidência não estivesse à minha frente. Sim, somos. Mas são as pessoas que têm género, não as coisas que elas fazem. Uma mulher não é mulher pelos saltos altos e pelos lábios pintados. Um homem não é homem por não se depilar (chega a ser divertido dizer isto tendo em conta que muitos miúdos tiram os pelos). O mundo para lá do nosso umbigo diz-nos isso mesmo. A minha amiga Marisa, desde Cabo Verde, dizia que os homens neste país são imunes à ditadura das cores. Aqui já foram um dia, nos anos 80. Há 20 anos, que homem se atrevia a dizer que queria ser cozinheiro? Desafios diferentes nos esperam. Elas têm de encontrar lugar entre máquinas, eles na domesticidade.

O meu marido dizia que se está a caminhar para uma uniformização. E eu digo, não. A uniformização (e catalogação) é o que temos hoje, e, felizmente, em muito menor escala. Eu, na verdade, só quero ampliar a diversidade. E, mais do que isso, não me limitar a dizer que acredito na diversidade, como fez a Porto Editora quando o debate se instalou para, sob a "recomendação" em forma de ameaça do governo, mudar de opinião e retirar os livros do mercado, com a sombra dos contratos de manuais escolares a pairar. Um pouco de proporção, por favor. Basta assinalar as boas e más práticas, não? É como o Chico Buarque, no fundo. Embora ache que o homem não é nenhuma vaca sagrada que não possa ser alvo de nada mais do que elogios, não me sinto à vontade para falar do que ele escreve. Mas há, definitivamente, cantores que cantam poemas machistas. Anselmo Ralph é o primeiro nome que me vem à cabeça. Não me passa pela cabeça censurar o homem nem muito menos deixar de bater o pé ao som de Curtição, mas é machista e é bom ter isso em mente. Como alguém cuja opinião prezo me dizia: tendo a desculpar a arte. É uma boa maneira de pôr a coisa. Arte é ficção. E a sua principal utilidade é simular o mundo. Da mesma forma, não espero que não retratem com violência o que se passava nas arenas romanas com gladiadores só para não irritar peles sensíveis. É o que é.

Quanto ao debate de género, nada temam, boas pessoas. Somos como somos e, apesar do muito que já mudámos, nunca deixámos de ser homens e mulheres, de nos juntarmos, de nos multiplicarmos.

Se cada um fala como quer, eu quero falar sem preconceito

Ia escrever um mega-relambório sobre a secretária de Estado que tornou público que é homossexual e como se dá a coincidência cósmica disso calhar no dia em que me chegou ao mural o bloco de atividades para rapazes e o bloco de atividades para raparigas da Porto Editora. O deles azul, o delas rosa. O deles com foguetões, lápis e caravelas. O delas com cupcakes, colares e bailarinas. Isto já para não falar de, lá dentro, os exercícios deles serem mais difíceis do que os delas (que é tão ridículo que nem vou comentar). São dois assuntos que estão ligados e a maneira como falamos deles, como desenhamos rapazes e raparigas resumem o que pensamos como um todo. E não me apetece voltar a explicar o assunto.

Para quem acha que está tudo bem, é capaz de ser ridículo que se defenda que não existem coisas para rapazes ou raparigas. Outros, como eu, acham que não está tudo bem, que tudo, até Chico Buarque, pode ser debatido* e que há espaço para melhorar. Portanto, sim, procuro vigiar as minhas palavras. Procuro que sejam o mais verdadeiras e adequadas ao que quero dizer (e fazer) e procuro estar próximo daqueles que me parece que o fazem de maneira correta. Só isso.

*Debatido não é proibido.

Três semanas de férias, uma viagem de um ano

É possível que estas tenham sido as férias mais bem aproveitadas de sempre. Três semanas de descanso onde cabem idas ao Alentejo e ao Algarve enquanto passeio durante um ano pelos EUA, suspensa do que conta Isabel Lucas em Viagem ao Sonho Americano. Ler um livro bom é uma sensação que não preciso de descrever e só por isso já teria valido a pena. Acontece que estas páginas são muito mais do que isso. Primeiro é um desses livros que nos faz querer ler outros livros (é o melhor elogio que lhe posso fazer), depois é um retrato da América no momento em que mais preciso dele. Basta dizer que coincide com o momento em que os supremacistas brancos aparecem, basta dizer que é um conjunto de reportagens escritas durante a campanha eleitoral, a vitória e a tomada de posse do inominável, percorrendo 97 mil quilómetros de EUA, publicadas inicialmente no Público. A ideia (se bem percebi) é esta: como a literatura é moldada pela paisagem, a partir de 16 romances. Ao mesmo tempo, como é que o país de Obama é o país de Trump? Para quem anda à procura de um sentido para tudo isto (eu ando), aqui encontra algumas (boas) pistas. 

Em novembro de 2017 acompanhei a orquestra Gulbenkian numa digressão por São Paulo e Rio de Janeiro e conheci André, violetista, da Carolina do Norte. Antes de um concerto, precisamente 8 de novembro, dia das eleições, ele e o maestro, também norte-americano, trocavam impressões sobre o andamento dos resultados eleitorais. Interessou-me aquele 'quadro', porque André é negro e o diretor artístico, Lawrence Foster, é judeu. Nenhum dos dois queria que o inominável ganhasse, ambos tinham medo, mas, por essa altura, esse ainda era um cenário que parecia de ficção científica. Sobretudo para mim. Porque André repetia: "Não confio nas sondagens". Ficámos a conversar e ele disse esta frase: "Com este gajo temos o Ku Klux Klan a aparecer em público com as bandeiras do Sul a intimidar as pessoas".

André, 60 anos e memória q.b., tinha 14 anos quando frequentou pela primeira vez uma escola com brancos. Façamos as contas rapidamente: foi em 1970. Como me explicou, apesar da ordem federal que abolia a segregação nas escolas ser de 1954, só em 1970 foi aplicada na Carolina do Norte, uma informação que pode ser contrastada no google a qualquer hora (foi o que fiz nessa noite quando cheguei ao hotel). Foi ontem que negros e brancos puderam começar a usar as mesmas casas de banho, como se vê no filme As Serviçais (2011). Foi na década de 60 que Rosa Parks se recusou a ir para o fim do autocarro e que Martin Luther King fez O discurso.

O que André dizia parecia impossível, mas com a vitória de Trump tornou-se evidência. Com Steve Bannon na Casa Branca, com Charlottesville, com as reações de Trump e, sobretudo, depois de ver o documentário da Vice News e do que mais tarde relatou a jornalista, Elle Reeve, a Anderson Cooper. As palavras do músico não são hipérbole. E outros partilhavam já desta ideia de que "com este gajo temos o Ku Klux Klan a aparecer em público a intimidar as pessoas" quando, ao longo de 2016, Isabel Lucas calcorreou os EUA. Transcrevo o que lhe disse Robert Moore, diretor do El Paso Times, jornal da cidade na fronteira com o México: "Donald Trump levou a discussão a um nível completamente radical, e de alguma forma dá permissão a outros para usar o mesmo filme que ele está a usar. Isso é talvez a coisa mais nefasta que está a acontecer nestas eleições. Uma espécie de grande árvore maléfica à qual foi permitido chegar à superfície. Agora é aceitável falar de pessoas de uma forma que seria impensável há poucos anos" (página 217). Ao aceitar o apoio destes elementos, Trump dá-lhes a bênção da mesma maneira que legislar o casamento entre pessoas do mesmo sexo é um cartão vermelho à homofobia.

Terminei o livro na noite de sábado com uma certeza: é incrível o grau de ignorância em relação aos EUA. Aconteceu-me alguma frustração ao longo das páginas por não ter lido nada de alguns escritores que dão informação tão importante sobre o mundo. Fico sempre a pensar: mas que raio faço eu com o meu tempo? E essa ignorância que não tem nada de mal, em teoria. Há imensas, imensas coisas sobre as quais o meu desconhecimento é vasto  e profundo, mas este país é outra coisa. Quero saber mais sobre os americanos. Próxima leitura: "A América e os Americanos", de John Steinbeck.

Obrigada, Maria João, por este duradouro presente.

 

 

Parecendo que não, ser jornalista é difícil

Veja-se este assunto, um dos mais difíceis de ser jornalista: devemos ou não publicar imagens de mortos? Geralmente, do lado dos tablóides, aposta-se em mostrar tudo. Do lado dos jornais de referência, no não exibir esse tipo de fotografias. Houve uma altura em que era bastante (mais) fácil tomar uma decisão porque o que se via era o que os meios de comunicação mostravam. Entretanto, vieram as redes sociais. E mudou tudo. Porque podemos não ver mortos no El Mundo mas vamos ver um vídeo dos acontecimentos no mural de um amigo que partilhou do amiga da prima de um tio de uma pessoa que estava lá. É incontrolável e muda completamente a nossa perspetiva. A minha, pelo menos. Isto vem a propósito da capa do El Pais. É chocante ou é a equivalência à da carnificina? É sempre preferível sermos poupados a este espetáculo mas não será importante num caso destes vê-lo? Outro tema é a replicação destas imagens nas nossas redes sociais. As autoridades catalãs pediram que não fosse feito e concordo. É uma medida de higiene para não se amplificar o que vira um circo de horrores a favor dos terroristas. É bastante diferente do que pode fazer um jornal, que enquadra, noticia e edita a Informação que nos faz chegar. São linhas ténues, bem sei, mas acho que facilitam o caminho. Também há um debate super interessante neste caminho? Devemos noticiar atentados? Eu acho que sim, vamos fazer o quê? Sonegar informação? No entanto, não será que devemos tratar os alegados terroristas mais como criminosos e menos como gente que é guiado por algum motivo maior? Eles chamam-lhe daesh e o califado de não sei o quê, mas imaginemos que a todos nós que nos sentimos infelizes com alguma coisa nos dava para pegar em carros e atropelar gente?

T'estimo Barcelona

1. Atentados terroristas são atentados terroristas. São maus em Londres, Paris, Bruxelas ou em qualquer lugar, mas em Barcelona... Barcelona é a cidade onde vivi três anos, aquele sítio de onde me sinto um bocadinho. Embora a cidade de 2000-2003 já não seja a mesma, há coisas que se mantêm. Quando leio os nomes das ruas, sei realmente para onde vão, o que lá acontece, como se chega. Impressiona-me. A parte chocante é imaginar que coisas destas podem acontecer às pessoas que conheço. Mandei mensagens. Entre as respostas e as marcações de "seguro" via Facebook, parece estar tudo tranquilo, mas depois há aqueles que não dizem nada. Lembro aquelas pessoas com amigos e família em Londres, quando um louco esfaqueou gente numa zona de restaurantes. Sentiam angústia e, ao mesmo tempo, não queriam acreditar que algo pudesse ter acontecido. "Ah, de certeza que não se passa nada". É o que penso. Ah, eles são dali, é quinta-feira, deviam estar a trabalhar, não iam descer as ramblas, zona mais turística de todo o sempre, num dia de semana.

Marta, antiga colega de trabalho, conta-me no chat que por um mero acaso estava em Barcelona hoje numa zona um pouco acima das Ramblas. Telefonaram-lhe a perguntar se estava tudo bem, a contar o sucedido. Ficou assim justificada a quantidade de agentes policiais que começou a ver. Tentaram sair o mais depressa possível, mas foi tarde demais. Demorou três horas a fazer um caminho que habitualmente se percorre em 60 minutos. "E com um susto..." Não estamos no olho do furacão, mas impressiona porque podíamos ser nós. Nestas alturas leio sempre alguém dizer que estes crimes atentam contra o nosso modo de vida. Parece-me uma explicação demasiado simples, mas a consequência, tenho a certeza, é essa. Começa naquele segundo pensamento que temos marcando uma viagem (e se?) e continua quando vamos a um festival de música e percebemos que há polícia por todo o lado e que é mesmo para ser assim. Temos de ver polícias vestidos de polícia para nos sentirmos seguros. 

2. Estou a fazer atualizações nos La Vanguardia de dois em dois minutos. As autoridades pedem sangue e, ao mesmo tempo, pedem que não se mostre sangue -- "Por respeto a las víctimas y a sus familias, por favor, NO compartas imágenes de heridos en atropello de #Ramblas de Barcelona" -- e, pequeno que pareça este pedido, é tão importante não amplificar os feitos dos terroristas. É preciso parar de alimentar este voyeurismo de beira de estrada por mais tentador que seja. 

3. Talvez soe estranho dizer isto, preciso de "escrever alto", mas o que mudou mesmo nestes anos -- desde o 11 de setembro, valha a verdade -- foram as redes sociais, esta informação ao minuto, os canais de notícias, a internet no telefone. Havia Al Qaeda, havia ETA. Eram terroristas, mas essas coisas, pelo menos até às Torres Gémeas, quando tudo aquilo aconteceu em direto perante os nossos olhos (a quantidade de gente que diz que pensou que o segundo avião fosse uma imagem de repetição do primeiro ataque), eram um pouco longíquas. Em 2000 ou 2001, mas seguramente antes do que se passou em Nova Iorque, eu estava a jantar em casa com duas amigas quando sentimos um estrondo na rua. Foi uma coisa de segundos, passou, continuámos a conversar, não falámos mais sobre isso. A televisão estava apagada, os nossos telefones eram nokias, não tinham alertas. No dia seguinte, levantei-me para ir trabalhar às 07.00 e fiz o percurso do costume até à Diagonal. Encurtava sempre caminho por um prédio com arcadas e nessa manhã fiz o mesmo apesar de haver fita policial à volta. Ninguém me disse nada, eu nem pensei, ia distraída, não havia grande confusão. Foi quando cheguei ao trabalho que percebi que tinha explodido uma bomba. Em outra ocasião, um carro armadilhado matou um polícia municipal na Diagonal. Eu tinha medo, nunca na vida tinha estado tão perto de uma coisa assim. Uma colega disse uma coisa horrível, que nunca vou esquecer. Que vivia ao lado do Hipercor atacado pela ETA em 1987. Lembrava-se da confusão, mas muito pior do que isso. "Morerram vizinhos meus". 21 pessoas no total. Foi o ataque mais mortífero, o último até ontem. "Tens de viver com isso", disse ela. 

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As férias

A ideia era fazermos umas férias diferentes este ano. Andar mais, parar, seguir, sem muitas regras, apenas um trajeto em mente e, dado estarmos em agosto, lugares para dormir assegurados. Tracei objetivos ambiciosos no início: começar em Castelo Branco e ir descendo até às Minas de São Domingos. Daí para o litoral. E, convém dizer, também estava nos nossos planos fazer tudo isto de autocaravana. Infelizmente, mesmo típico nosso, fomos empurrando o assunto "mais para a frente" até que em Julho já não havia nada de jeito para alugar. Deu para fazer um "crash course" de caravanismo e perceber que me entusiasmam mais as carrinhas adaptadas do que as motorhomes. No próximo ano se verá...

Para já, dizer o seguinte: só regressamos este sábado e acho que é seguro dizer que está a ser um êxito. O que já vimos deste país...

Escrevo desde a piscina de Avis (começo, aliás). Três piscinas de diferentes tamanhos, relvado bem tratado e aquele típico bar de apoio hamburguers-pizzas-baguetes de atum, com as colunas ligadas para todo o recinto, a passar o Despacito. Nem seria verão de 2017 se não tocasse pelo menos uma vez. Acabámos aqui por força das circunstâncias. A praia fluvial não tem água suficiente. Essa seca que lemos nas notícias torna-se real nos muitos quilómetros de estrada que temos devorado. Aqui, na barragem do Maranhão, basta ver as marcas. Onde chegava, onde está.

Não passava aqui, pelo Alto Alentejo (ainda podemos usar esta designação?), há tanto tempo que me surpreende a quantidade de turismos rurais que agora existem, apesar de não ver assim tantos turistas. Existem dois Alentejos e nem é o alto e o baixo. É o do litoral e o do interior. Já tinha tido uma boa ideia desse assunto quando procurei alojamento nas Minas de São Domingos (na época para a autocaravana) e em Beja. A oferta é incomparavelmente menor. Ou talvez os hotéis, hostels e turismos rurais estejam fechados como estes em Cabeço de Vide: uma casa senhorial que esteve fechada durante anos, agora é um turismo rural... fechado; também há um hotel enorme, o Candelária, vazio -- diz-se que era de cinco estrelas. Era o sonho de um construtor civil com ligações a este lugar. Morreu e a história foi interrompida. A dimensão impressiona. Uma massa gigantesca, adormecida. Para Iá do portão trancado só consigo ver dois vasos do tamanho de pessoas e réplicas de animais. Não estou a inventar: eu vi um elefante de louça em ponto grande.

É uma imagem tão desconcertante como perceber que aqui vivem cada vez menos pessoas. Tão poucas que não chegam para manter restaurantes abertos. Alter do Chão, onde há um castelo medieval e uma coudelaria conhecida indicada em todas as placas, com direito a tradução em espanhol, inglês e alemão, não é uma vila muito mais agitada. É preciso fazer 40 km, até Portalegre, para quase tudo. Não é mau. A cidade é bonita e, para quem procura uma certa autenticidade (ou o que imagina ser autenticidade), está-se bem. Jantámos num restaurante chamado Poeiras, três estrelas Michelin no ranking Santos Costa. Comida saborosa, serviço hiper despachado (ainda nem bem me tinha sentado depois de arranjar as miúdas e já as lulas recheadas, as plumas na brasa e o arroz de pato estavam na mesa), atendimento muito simpático. Fazia 300 km de propósito para lá voltar. Ao nível da atração turística foi o que mais gostei. Não houve tempo para mais, verdade seja dita.

Coisa bizarra, os supermercados e mercearias estão cheios de produtos espanhóis. Mañanitas, pipas... Também há uma loja chinesa em cada esquina e, pasmemo-nos, com chineses incluídos. O que acontece neste país em que não conseguimos ter portugueses a viver em lugares onde se fixa gente vinda do país mais populoso do mundo? Como é que alguém descola de Pequim com destino ao Alentejo que até os portugueses esqueceram?

 

Feitos saltimbancos

Deixámos Lisboa no dia 1 de agosto, rumo a Porto Covo. Apesar de não ser a primeira vez que passamos férias no sudoeste alentejano, a vila cantada por Rui Veloso era um lugar desconhecido. A praia de São Torpes não nos convenceu mas a Praia Grande é ótima. E ao nível da descontração dá 15-0 ao Algarve. Não me interpretem mal, isto até podem ser só coisas da minha cabeça, mas assim que passamos Aljezur, carregamos no botão da "pose". Não confundir com o da "pausa". Esse é mesmo em Porto Covo. Aqui, quando a gente diz "chinelo no pé" é mesmo "chinelo no pé e calcanhar crestado de tanto pisar areia". Já nos estávamos a habituar aquela coisa de passar o dia na praia, tomar banho, sair para jantar e dar um passeio. Espero que as miúdas guardem memórias boas destes dias. Se bem que, claro, a gente nunca sabe.
Quando era miúda (adolescente até) tinha uma ideia romântica dessas férias em família que me eram descritas por colegas de turma. Quando voltavam à escola ainda tinham marcas desses momentos -- tranças, borrachinhas compradas em Ayamonte. Falavam de Armação de Pêra como um dos lugares mais incríveis do planeta e falo sobre isto todos os anos, porque ainda me parece extraordinário que eu pudesse sonhar com momentos assim. Eu só tinha uma semana de férias com os meus pais, e era uma semana espetacular (era MESMO), mas o meu pai detestava (e detesta) a ideia de ficarmos parados num lugar de papo para o ar. Era sempre a loucura! O problema é que agora começa a apetecer-me retomar esses tempos. Quando estava a marcar os lugares onde íamos assentar arraiais o António já dizia: "temos de ficar dois ou três dias em cada sítio". Portanto, três dias depois, fomos para a Zambujeira do Mar.

Caímos em cheio no Meo Sudoeste. Por um lado, queríamos fugir dele, por outro era irresistível. Fomos. É calmíssimo, na verdade. Ideal para fazer 'vida de Zambujeira do Mar', isto é, praia até fecharem a porta, jantar tardio e dançar noite dentro. Era como se o Clube da Praia se tivesse mudado para a Herdade da Casa Branca. Não que tenhamos ficado até tão tarde. Somos mais de ir à roda gigante, comer fartura e recolher às boxes. Neste caso, o para sempre no coração das nossas filhas, Zmar.

Há dúvidas sobre o que as cativou mais: as casinhas de madeira, onde experimentaram as alegrias do beliche? Era preciso não serem crianças para não gostarem de tal peça de mobiliário. Terá sido a pequenez dessa cabana, tão compacta? A piscina de 100 metros? A de ondas? Ou o passeio no mini-club para ver burros, araras, póneis e cabras? Ou o hiperpopulado pequeno-almoço? Há gente com fartura no Zmar e, todas as manhãs, aquela hora em que uma animadora chama para "a aula de zumba junto à piscina". Foi também o momento em que se abateu sobre mim uma certeza: se o Dirty Dancing saísse hoje, eu seria a mãe da Baby. 

 

Três dias depois, arrumámos a trouxa, tirámos o pó à pressa numa estação de serviço e comemos quilómetros até Évora, repleta de franceses, brasileiros, asiáticos, portugueses... Em pelo menos dois sítios, faltavam pessoas para atender com qualidade os muitos clientes que tinham pela frente. Um desses lugares foi o Café Arcada, um desses estabelecimentos à moda antiga, onde imagino sempre umas avozinhas com o cabelo cheio de laca a comer torradas e a sujar as chávenas de chá com batom e jovens intelectuais que vão mudar o mundo. Era pré-pagamento, uma pessoa a atender e outra a recolher louça suja nas mesas. Como dizer? Não me chateia nada pegar no tabuleiro e ir para a mesa (a empregada era de uma eficácia extraordinária), mas frustrou as minhas expectativas. O que eu queria mesmo numa pastelaria à antiga era serviço à antiga. Tirando isso, vale bem cruzar a porta giratória. E, é preciso dizer, tudo isto é uma nota de rodapé se comparada com a cidade, cheia de vida, música à noite na rua e esse encontro de épocas que é estar no templo de Diana (tão pequeno e magnânimo) rodeada de edifícios dos séculos XVII, XVIII e XIX e de caras para o melhor do século XXI que é a Fundação Eugénio de Almeida. Três coisas muito boas nos aconteceram à mesa. Pequeno-almoço no Pastelaria Conventual Pão de Rala, lanche na Fábrica dos Pastéis, jantar no Café Alentejo (foi preciso marcar para garantir mesa). Falhámos vergonhosamente a Capela dos Ossos, achei que era capaz de ser demais para as miúdas depois de saber que existe a seguinte inscrição: "Nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos". Arrrrrrepiante! Mas fizémos um desvio para Guadalupe, pequena aldeia onde nos anos 60 foi descoberto o cromeleque dos Almendres. Para que servia? Não se sabe. Eu aposto que era a maneira megalítica de guardar lugar na praia.

 

Praias fluviais foram uma descoberta deliciosa nestes dias. Em Monsaraz, nesse lugar que nasceu com a barragem do Alqueva, as miúdas fartaram-se de rir quando lhes contámos que iam ver este lugar ao mesmo tempo que nós. Elas crianças, nós com mais de 40 anos. Aproveitámos para nadar bastante, sem corrente, e sem aquele sol inclemente que impede de sair do chapéu.  Havia franceses, espanhóis e italianos. Sempre gostava de saber como é que certos estrangeiros chegam a conhecer certas coisas deste país. A última paragem foi em Fronteira, a praia fluvial da Ribeira Grande ou da Ponte, junto a uma velha ponte, relvado e árvores por todo o lado. O rio não era vigiado, preferimos ficar a torrar à beira da da piscina municipal, depois de um incrível, mas mesmo incrível almoço.

Nestes dias, provámos casinhas de parque de campismo, tudo ao molho e fé em Deus num quarto, a casinha de madeira do Zmar, uma casa a sério. Viver como não vivemos habitualmente também fez parte da experiência. Já perdi a conta aos lugares onde fomos, onde paramos, onde passamos tempo, às conversas que temos no carro. Vamos todos tirar coisas diferentes destes dias. Essa é, afinal, a magia da coisa.

 

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